Prazo de caducidade da acção indemnizatória por venda de coisa genérica defeituosa: Conheça o Acórdão Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2003

A venda de coisa defeituosa confere ao comprador o direito à anulação do contrato por erro, à reparação da coisa, à substituição da coisa, à redução do preço e à indemnização.

O exercício destes direitos está sujeito a prazo de caducidade. Em regra, este prazo é de 6 meses contados da denúncia do defeito (nas relações de consumo o prazo é alargado para 3 anos).

Porém, discute-se se este prazo é aplicável à compra e venda de “coisa indeterminada de certo género”, isto é, aos contrato de compra e venda celebrados sem a presença do bem vendido.

Isto acontece, por exemplo, quando o comprador adquire bens por referência a um catálogo ou amostra. O comprador, porque não está na presença dos bens que está a comprar, adquire “uma coisa daquelas” e não “aquela coisa”.

A distinção pode ter relevância a vários níveis, pois ao invés do que sucede na venda de coisa determinada, em que o adquirente está na presença do bem que comprou e este lhe é imediatamente entregue pelo vendedor, na venda de coisa indeterminada de certo género existe um intervalo de tempo que medeia entre a venda e a entrega do bem, durante o qual é possível que este se deteriore, adquira vícios ou perca qualidades.

O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2023 aborda a problemática em termos profundos, para concluir que a acção de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade de 6 meses, contados da data da denúncia dos defeitos.

Os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça não encontraram razão juridicamente atendível para dizer que o prazo de caducidade de 6 meses vale no caso de venda de coisa determinada (obrigação específica) e já não deve valer no caso de venda de coisa indeterminada de certo género (obrigação genérica).

A decisão não deixa de ser polémica, na medida em que se afasta da doutrina maioritária, de onde destacamos João Calvão da Silva, Jorge Morais Carvalho, António Pinto Monteiro, Paulo Mota Pinto, Luiz Menezes Leitão e Pedro Romano Martinez.

Seguindo de perto a doutrina de Nuno Pinto Oliveira, os Juízes Conselheiros consideraram que, seja a obrigação genérica seja a obrigação específica, o que é facto é que, apresentando a coisa vendida e entregue defeito imputável contratualmente ao vendedor, estamos sempre perante um mesmo preciso fenómeno jurídico: o não cumprimento (cumprimento imperfeito) da obrigação.

Específica ou genérica a obrigação, o certo é que o vendedor está em qualquer dos casos vinculado desde o início a uma prestação que, dentro do programa contratual estabelecido ou pressuposto, seja perfeita e que cumpra os propósitos do contrato, satisfazendo os correspondentes interesses do comprador.

De acordo com os Juízes Conselheiros, seria absurdo pensar de outra forma e dão um exemplo: “Se é comprado e entregue aquela concreta coisa que se encontra disponível na loja, mas que apresenta defeito de funcionamento, o comprador teria seis meses, sob pena de caducidade, para accionar o vendedor; se na mesma ocasião o mesmo comprador compra uma segunda coisa da mesma marca, modelo e com as mesmas funcionalidades, e que, dentro da sua embalagem de fabrico, vai ser retirada do stock da loja e assim entregue ao comprador, mas que apresenta idêntico defeito, só ao fim de quarenta vezes mais tempo (vinte anos) é que o comprador seria normalmente confrontado com um obstáculo ao exercício do seu direito.”

Em abono desta tese, os Juízes Conselheiros operam ainda um anacronismo com as leis que regulam os direitos do consumidor, designadamente na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, sufragando que também nesta legislação o legislador não procede a qualquer diferenciação em matéria de caducidade (de curto prazo) dos direitos do comprador fundada na natureza (específica ou genérica) da obrigação.

Visando esta legislação conferir maior protecção ao consumir, nenhum sentido faria que o legislador reduzisse o prazo do direito de acção, no caso de venda de coisa genérica, de 20 anos para 3 anos. Isto é, na opinião de Nuno Pinto de Oliveira, outra clara demonstração de que o legislador não faz qualquer distinção de regime.

O acórdão contou, ainda assim, com votos de vencido.

Desde logo do Juiz Conselheiro António Magalhães, que subscreveu o acórdão-fundamento, o qual mereceu anotação favorável dos Profs. António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto.

Mas também da Juiz Conselheira Maria Clara Sottomayor, por entender ser consensual que o Código Civil nesta matéria precisa de reforma, dada a disparidade de regimes entre a venda de coisas específicas e a venda de coisas genéricas.

Porém, tal tarefa caberá ao Legislador e não aos Tribunais. Acrescenta ainda que a aplicação dos prazos curtos de denúncia do defeito e do exercício do direito de acção, conduz a um resultado desajustado nos casos em que a coisa genérica vai ser incorporada num processo produtivo complexo, tornando-se muito difícil (senão mesmo impossível) cumprir tais prazos. Conclui que o facto de o prazo geral de prescrição ser longo facilmente será temperado pela aplicação do instituto do abuso do direito, permitindo fazer justiça.

Como última nota, salientamos que ao invés do que ocorria com os Assentos (os quais integravam as fontes normativas), os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não gozam de força vinculativa fora do processo em que são proferidos.

Não obstante, o sistema jurídico português tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos, atenta a solenidade do julgamento (pelo Pleno das Secções Cíveis), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias demonstram pelas soluções uniformizadoras.

Por isso, podemos com segurança afirmar que o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2023 coloca um ponto final na querela.

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