COVID-19: Os contratos são para cumprir?

As partes contratantes têm, como regra, o direito de fixar livremente o conteúdo dos contratos (art.º 405.º do Código Civil). Esta liberdade contratual possibilita a criação de “pactos” que, uma vez concluídos e sem vícios, nega a cada uma das partes contratantes a possibilidade de se afastar unilateralmente deles.

Como tal, em princípio, os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na Lei (art.º 406.º do Código Civil).

No entanto, é também princípio geral do direito que, se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (art.º 437.º do Código Civil).

Esta possibilidade de alteração dos contratos confronta dialecticamente dois princípios:

  • O da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial;
  • O princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte.

A título de exemplo, podemos citar o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/06/2016, no processo n.º 4463/14.9TBVNG-A.P1, decidiu que “A crise económica e financeira dos anos de 2008 e 2009, desencadeada pela chamada crise do subprime, iniciada em 24 de julho de 2007 com a queda abrupta do índice Dow Jones, poderá representar uma alteração anormal das circunstâncias presentes ao tempo da conclusão dos diversos contratos celebrados, como tem sido defendido por alguma doutrina e jurisprudência.”

Vide ainda, a título meramente exemplificativo, o acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 27.01.2015, processo n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1; o acórdão da Relação de Coimbra, de 5.11.2013, no processo n.º 1167/10.5TBACB-E.C1; e acórdão da Relação de Lisboa, de RL, 14.06.2012, 187/10.4TVLSB.L2-2, todos acessíveis no site da DGSI.

Ora, a pandemia do COVID-19, a declaração do “estado de emergência” e o subsequente decretamento da “situação de calamidade”, terão sido, em muitos casos, em Portugal e no resto do mundo, absolutamente “imprevisíveis” no momento da celebração dos contratos, independentemente da sua natureza. Não temos dúvida, por isso, que aquelas circunstâncias imprevisíveis podem caracterizar-se como situações “anormais”, não cobertas pelos riscos próprios do contrato. Porém, tal caracterização terá de ser casuisticamente.

Por seu turno, sendo previsíveis as dificuldades de cumprimento e, em muitos casos, até o incumprimento dos contratos por razões diversas associadas à pandemia do COVID-19 e às medidas restritivas determinadas pelas autoridades públicas e administrativas, vários são os regimes que podem ser chamados à colação para a resolução das questões, designadamente, a mora do devedor, a mora do credor, a alteração das circunstâncias, a impossibilidade de prestar, o incumprimento culposo, o incumprimento não culposo, o abuso de direito, a desproporção entre custos do devedor e benefício do credor, entre outros.

Assim, a metodologia a seguir deverá ser a seguinte:

Leitura, análise e interpretação do clausulado:

Por um lado, poderá suceder que as partes, ao abrigo da liberdade contratual, tenham previsto no contrato soluções ou consequências jurídicas para o caso de ocorrência de situações anormais que dificultem, atrasem ou impossibilitem o cumprimento da obrigação, determinem a perda de interesse ou desobriguem uma das partes do cumprimento. Se for o caso, a solução jurídica será aquela que as partes clausularam.

Por outro lado, poderá também suceder que, da leitura do clausulado ou pela própria natureza da obrigação assumida, se chegue à conclusão que a alteração anormal das circunstâncias esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Se for o caso, o contrato tem de ser pontualmente cumprido.

Conjugação do clausulado com o regime legal aplicável:

Não ocorrendo nenhuma das situações supra referidas, há que verificar se foi aprovada legislação específica que regule o caso.

Com fundamento na declaração do “estado de emergência” e do “decretar da situação de calamidade”, foi aprovada diversa legislação restritiva dos direitos das pessoas, mormente, ao nível dos direitos de circulação e de iniciativa privada, que impossibilitaram ou tornaram muito difícil e até mais oneroso, o cumprimento de diversas obrigações assumidas.

Por seu turno, a Direcção Geral de Saúde tem publicado diversas orientações no seu website, https://covid19.min-saude.pt/orientacoes/, também elas limitativas do exercício de diversas actividades industriais e comerciais.

Como tal, em relação a alguns sectores de actividade comercial, foram aprovados diplomas que oferecem algumas directrizes sobre o que acontece às obrigações assumidas:

– O Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de Abril, aplicável ao sector do turismo, no seu artigo 4.º, confere ao “hospede” o direito de optar pela emissão de vale de igual valor ao pagamento efectuado e válido até 31 de Dezembro de 2021, ou pelo reagendamento da reserva do serviço de alojamento até 31 de Dezembro de 2021. E só no caso de não ser possível o reagendamento até 31 de Dezembro de 2021, o hóspede terá direito a ser reembolsado da quantia que tenha pago;

– O Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de Março, aplicável a todos os espectáculos artísticos e culturais, no seu artigo 4.º, estabelece que “os espectáculos” devem, sempre que possível ser reagendados no prazo máximo de um ano após a data inicialmente prevista, sendo que o reagendamento não pode implicar o aumento de custo do bilhete de ingresso. E só no caso de não ser possível o reagendamento do espectáculo, ocorrerá a restituição do preço dos bilhetes de ingresso;

– A Lei n.º 4-C/2020, de 06 de Abril, decretou um regime excepcional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, enquanto vigorar o estado de emergência, aplicável às rendas que se vençam a partir do dia 1 de Abril de 2020, não dispensando os arrendatários da obrigação do pagamento da renda, mas tão-somente prevendo uma moratória de 12 a contar do primeiro mês subsequente à cessação do estado de emergência.

Porém, alguns sectores de actividade (a grande maioria) continuam sem legislação específica e, nestes casos, impõe-se o recurso aos princípios gerais do direito.

Em todo o caso, atendendo à legislação que recentemente tem vindo a ser publicada (como são exemplo os dois diplomas supra referidos), parece ser opção do legislador que a “resolução” ou “destruição” do contrato deva ser a “ultima ratio”, isto é, em princípio, os contratos devem manter-se em vigor e ser cumpridos, ainda que com alterações / correcções.

Essa é também, em nossa opinião, o espírito do legislador no art.º 437.º do Código Civil, sendo, aliás, exigência do princípio geral da boa-fé.

A resolução do contrato só se justifica em situações limite, em que o restabelecimento do equilíbrio interno do contrato não é possível mesmo que se proceda à sua alteração.

Não se pode esquecer que a celebração de um contrato cria nos contraentes legítimas expectativas de consumação do negócio, não podendo, por isso, conceber-se um direito de resolução unilateral tão lato que permita a uma das partes “romper”, sem mais, um contrato.

Assim, não estando perante uma situação limite, a parte lesada apenas poderá ter direito à alteração / renegociação do contrato. A “renegociação” do contrato, nestas situações de excepção, deve ser feita através de meios de comunicação que facilitem a prova em juízo (preferencialmente, através de cartas registadas com aviso de recepção) e devem orientar-se por critérios de equidade e de acordo com o princípio da boa-fé.

Como boa prática, consideramos que as alterações se devem limitar ao mínimo indispensável ao restabelecimento do equilíbrio interno do contrato, por exemplo:

– Sendo previsíveis atrasos nos pagamentos, poderão alterar-se os montantes e datas limites dos pagamentos;

– Havendo dificuldade na prestação do serviço ou na produção dos bens, por atrasos no fornecimento, dificuldade de obtenção de mão-de-obra, encerramento da empresa, ou outras razões, poderão alterar-se os prazos de cumprimento da obrigação;

– Tendo aumentado exponencialmente o custo das matérias primas, com a consequente diminuição abrupta do rendimento esperado, poderão alterar-se os preços e, se for o caso, as condições de pagamento;

– Ocorrendo perda de interesse na prestação, por desaparecimento da clientela e diminuição abrupta da procura, poderão alterar-se as quantidades contratadas.

Não sendo possível obter acordo, o litígio terá de ser dirimido em Tribunal.

Havendo já incumprimento, identificar as suas razões, os seus responsáveis e se a prestação ainda é possível:

Não é possível identificar todas as situações de incumprimento de contratos que, em abstracto, poderão surgir no contexto da pandemia do COVID-19.

Por um lado, o incumprimento pode ser do credor (que, por exemplo, recusa a prestação), do devedor (que, por exemplo, não cumpre o prazo da prestação) ou ainda de ambos.

Por outro lado, devido à pandemia do COVID-19, a prestação poderá tornar-se impossível, quer total, quer parcialmente, sendo que, nestes casos, as soluções também variam.

Note-se, no entanto, que o incumprimento do devedor presume-se culposo (art.º 799.º do Código Civil), pelo que terá de ser este a ilidir a presunção, demonstrando que o incumprimento não se deve a culpa sua.

Em conclusão:

1-) Mesmo no contexto da actual pandemia, os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na Lei;

2-) Ainda assim, sendo pacífico que a pandemia do COVID-19, a declaração do “estado de emergência” e o subsequente decretamento da “situação de calamidade”, terão sido, em muitos casos, absolutamente “imprevisíveis” no momento da celebração dos contratos, e que a alteração anormal das circunstâncias não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato, a parte lesada tem direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade:

3-) A resolução do contrato é absolutamente excepcional e não poderá ocorrer senão nas situações em que, mesmo que se altere o contrato, não seja possível restabelecer minimamente o equilíbrio interno do contrato;

4-) A alteração e “renegociação” do contrato deve ser feita através de meios de comunicação que facilitem a prova em juízo (preferencialmente, através de cartas registadas com aviso de recepção) e devem orientar-se por critérios de equidade e de acordo com o princípio da boa-fé, sendo que, como boa prática, consideramos que as alterações se devem limitar ao mínimo indispensável ao restabelecimento do equilíbrio interno do contrato;

5-) O incumprimento do devedor presume-se culposo, recaindo sobre este o ónus de ilidir tal presunção.

 

Parecer da autoria dos departamentos da CCM Advogados, no sentido do cumprimento dos contratos, tão afectados pelo vírus COVID19.