O Direito de Preferência do Arrendatário

O direito de preferência do arrendatário relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal – comentário à posição do Tribunal Constitucional, agora sedimentada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020.

A-)

O Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, com força obrigatória geral, o n.º 8 do art.º 1091.º, do Código Civil, que dispunha que “No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fracção autónoma”.

A decisão baseia-se em três argumentos:

  • O reconhecimento do direito de preferência ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal tem graves implicações na esfera jurídica do senhorio:

(i) fica impedido de transmitir a terceiros a totalidade do prédio;

(ii) com a declaração de preferência, fica obrigado a transmitir ao arrendatário a quota-parte ideal do prédio correspondente à permilagem do locado;

(iii) não pode estipular livremente o preço do locado arrendado;

(iv) vê extinto o contrato de arrendamento;

(v) com a subsequente afectação ao preferente do «uso exclusivo» da parte do prédio correspondente ao local arrendado;

 

  • A norma questionada impõe limites à liberdade do proprietário estipular as condições em que pretende alienar o prédio parcialmente arrendado (para além de não poder dispor integralmente do prédio, não pode escolher a medida da quota, nem o respectivo valor);

 

  • A afectação ao preferente do «uso exclusivo» da parte especificada do prédio – a correspondente ao locado – implica divisão material do gozo do prédio, com consequente afastamento da regra do exercício «em conjunto» no que concerne à totalidade do prédio (artigo 1405.º, n.º 1, do Código Civil).

B-)

A decisão, relatada pelo Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro, não foi consensual e gerou polémica, tendo obtido voto de vencido por quatro Juízes Conselheiros, três dos quais subscreveram uma declaração de voto bastante crítica da decisão, contra-argumentando com os seguintes fundamentos:

  • A análise jurídico-constitucional há-de partir da Constituição, no caso, da protecção jusconstitucionalmente conferida ao direito de propriedade, confrontando com ela – e não com o regime jurídico resultando do Código Civil;

 

  • A iniciativa e a condução do processo de alienação continuam a pertencer ao proprietário-alienante, que, por isso, também dispõe dos meios jurídico-contratuais, para prevenir as diferentes situações e adequar as soluções em função das variáveis que possam ocorrer;

 

  • No acórdão pressupõe-se “uma impossibilidade ou dificuldade inerente à divisão da coisa comum que não se verifica na generalidade dos casos, e não tem eco na jurisprudência dos tribunais comuns, e que é desmentida, desde logo, pelo facto de boa parte dos arrendatários incluídos no âmbito de aplicação do novo direito de preferência habitar partes do prédio em tudo semelhantes a uma fracção autónoma”.

C-)

Em nossa opinião, no plano estritamente jurídico, afigura-se-nos que a verificação de conformidade de uma norma à Constituição da República Portuguesa se deva fazer no confronto com esta Lei fundamental, e nunca com as normas do Código Civil.

Ainda assim, não vislumbramos dificuldades de conformação entre o n.º 8 do art.º 1091.º do Código Civil e as normas respeitantes aos direitos de propriedade e de compropriedade.

A realidade demonstra que, na prática, quer o arrendatário, quer o senhorio, têm já muito bem definido o concreto local ou espaço sobre o qual se exercer o direito de preferência.

Com efeito, quer por via do contrato de arrendamento, quer por via de uma situação de facto sedimentada pelo decurso dos anos, é geralmente pacífico qual seja o espaço, ou local que ficará afecto ao uso exclusivo do preferente.

Há que salientar que foram dois os objectivos da Lei n.º 64/2018, de 29/10, com a alteração ao art.º 1091.º do Código Civil: (i) acabar com a desigualdade entre arrendatários de partes não autónomas e arrendatários de fracções autónomas; e (ii) combater a especulação imobiliária.

Neste contexto, é perfeitamente legítimo que o Legislador, com o objectivo de proteger outros direitos constitucionais, introduza factores de conformação do direito de propriedade do Senhorio.

Ainda assim, reconhecemos que o modo como o legislador delineou o exercício do direito de preferência sobre parte não autónoma de prédio urbano arrendado, quando interpretado literalmente, pode conduzir a uma excessiva ofensa do direito de propriedade do senhorio, senão vejamos: com a declaração de preferência, o senhorio ficaria obrigado a transmitir a quota-parte ideal pelo valor proporcional (permilagem) dessa quota parte face ao valor total da transmissão.

Esta solução, se interpretada literalmente, tem a potencialidade de conduzir a graves injustiças. Vejamos: não raras vezes encontramos imóveis não constituídos em regime de propriedade horizontal cujas partes componentes se encontram em distintos modos de conservação e que, nesta medida, concentram o seu valor venal nas partes melhor conservadas.

Habitualmente, as partes arrendadas encontram-se melhor conservadas, enquanto a partes não arrendadas podem estar degradadas, sendo que a quase totalidade do valor do imóvel se concentra nas partes arrendadas e em bom estado de conservação.

Numa situação destas, os arrendatários lograriam adquirir as partes que ocupam, muito melhor conservadas e que reúnem a quase totalidade do valor venal do imóvel, pelo preço proporcional relativo à sua permilagem, pagando um preço muito inferior ao valor real da parte que está a adquirir.

Por seu turno, o senhorio ficaria numa situação fragilizada, mantendo na sua propriedade apenas as partes degradas e quase sem valor, ainda que tenham muito mais permilagem.

Neste aspecto, o legislador deveria ter optado por uma solução mais equitativa, designadamente conferindo ao arrendatário o direito de adquirir a parte não autónoma que ocupa, com direito de uso exclusivo dessa parte, mas pelo seu justo valor de mercado e tendo em considerando a desvalorização que poderá causar à restante parte do prédio.

Não é este, no entanto, o juízo de inconstitucionalidade que é assacado no referido Acórdão do Tribunal Constitucional, posto que foi produzido no âmbito de um pedido de fiscalização abstracta, com o qual frontalmente discordamos.

Com efeito, a norma não tem de ser interpretada literalmente. Os demais princípios gerais do direito civil permitem uma interpretação sistemática da mesma, para prevenir situações de injustiça.

Têm razão, quanto a nós, os Juízes Conselheiros subscritores do voto de vencido quando afirmam que o proprietário-alienante dispõe dos meios jurídico-contratuais, para prevenir as diferentes situações e adequar as soluções em função das variáveis que possam ocorrer.

Uma última nota sobre o tema, recordando o voto de vencido vertido no Acórdão do Tribunal constitucional, que termina com um “recado” aos subscritores dos votos de conformidade: “A argumentação do presente Acórdão parece constituir um salto – senão mesmo uma viragem – em matéria de jurisprudência sobre direitos económicos, sociais e culturais, ou, ao menos, no que se refere à propriedade privada (…)

“Consiste em afirmá-los como análogos aos direitos, liberdades e garantias, num universo amplíssimo de situações. (…) A seguir-se este caminho, a coerência jurisprudencial imporá a revisão de algumas premissas dogmáticas que o Tribunal constitucional tem adoptado relativamente a casos próximos.”

Terminamos, por isso, com uma última provocação: que sorte terá o n.º 9 do art.º 1091.º do Código Civil, assim que seja suscitada no Tribunal Constitucional a sua fiscalização concreta?