COVID-19 E CASO FORTUITO OU DE FORÇA MAIOR NOS CONTRATOS

O que é o “caso fortuito” e o “caso de força maior”?

“Caso fortuito” corresponde ao desenvolvimento de forças naturais a que a acção do homem é totalmente estranha (ex: inundações, incêndios, a morte súbita, etc.);

“Caso de força maior” consiste num facto de terceiro, pelo qual o devedor não é responsável (ex: a guerra, a prisão, o roubo, ordem da autoridade, etc.).

Qual é a principal diferença entre “caso fortuito” e “caso de força maior”?

O conceito de “caso fortuito” tem subjacente a ideia de imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável se tivesse sido previsto.

O conceito da “força maior” tem subjacente a ideia da inevitabilidade: será todo o conhecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até presumido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.

O novo coronavírus SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19, cabe em algum daqueles conceitos?

A origem do SARS-CoV-2 tem sido objecto de diversos estudos e “teorias”;

Em todo o caso, a sua propagação para um grande número de indivíduos, sem imunização adequada para tal e em todos os continentes do globo (ao ponto de ser denominada “pandemia”), permitem a segura conclusão de que o SARS-CoV-2 pode ser considerado uma situação de “caso fortuito”, na medida em que não se podia prever;

Por seu turno, as medidas governativas adoptadas para o combate ao SARS-CoV-2, atento o seu carácter altamente restritivo das liberdades colectivas e individuais, permitem igualmente a segura conclusão de que correspondem a “caso de força maior”, na medida em que são acções de terceiros (dos Governos) que não se podem evitar.

O “caso fortuito” e o “caso de força maior” podem ter implicações no cumprimento dos contratos?

A análise será sempre e necessariamente casuística.

Em princípio, os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na Lei (art.º 406.º do Código Civil).

Por isso, em primeiro lugar, é essencial verificar se o contrato contém cláusulas que definem e delimitam os casos de “força maior” ou de “caso fortuito” e as respectivas consequências.

Não existindo, há que recorrer aos princípios gerais do direito civil. Assim:

Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (art.º 437.º do Código Civil).

Por outro lado, a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor (art.º 790.º, n.º 1 do Código Civil).

Se o incumprimento decorrer de “caso fortuito” ou de “caso de força maior”, que direitos assistem ao credor e ao devedor?

Várias hipóteses se perfilam:

 

1-) Se a prestação se tornou totalmente impossível?

À partida o credor nada poderá exigir do devedor.

Exemplo: se A contrata B para, na data do seu aniversário e mediante o pagamento de um preço, realizar serviço de “catering” num convívio organizado pelo A e, na sequência da declaração do estado de emergência, a realização daquele convívio é proibida, a prestação de B torna-se impossível por causa de força maior que não lhe é imputável. Assim, nem A pode exigir de B a realização da prestação, nem B pode exigir de A o pagamento do preço.

 

2-) Se a prestação se tornou parcialmente impossível?

À partida o devedor exonera-se da obrigação mediante a prestação do que for possível, com a consequente redução proporcional da contraprestação a que a outra parte estiver vinculada.

Exemplo: se A. contrata B para, em determinada data e mediante o pagamento de um preço, realizar serviço de “catering” para 300 pessoas num evento organizado por A e, na sequência da declaração do estado de emergência, a realização daquele evento é limitada à presença de 50 pessoas, B cumpre a sua obrigação realizando o serviço para as referidas 50 pessoas, enquanto A. cumpre a sua contra-prestação pagando 1/2 do preço.

 

3-) Se a prestação se tornou impossível apenas durante um período de tempo (impossibilidade temporária)?

Mantendo-se o interesse do credor na prestação, o devedor não responde pela mora no cumprimento.

Exemplo: se A contrata B para, em determinado prazo, fornecer 5000 unidades de um artigo têxtil e B, em virtude de um surto de covid-19 nas suas instalações, só consegue entregar os artigos 15 dias depois do fim do prazo estipulado (mercê do encerramento das instalações e da privação de parte dos seus colaboradores do sector produtivo), não responde pela mora no cumprimento.

 

4-) Se uma pessoa que se obrigou a realizar determinada prestação ficar impossibilitado de a cumprir e não puder fazer-se substituir por terceiro?

À partida, extingue-se a sua obrigação.

Exemplo: se A contrata B, conceituado e mundialmente reconhecido pianista clássico, para realizar um concerto e apresentar a sua mais recente obra musical, e B contrai a doença SARS-CoV-2, fica desobrigado de cumprir a sua obrigação, a qual se extingue (se A não aceitar a realização do concerto noutra data), posto que só ele pode cumprir a prestação a que se obrigou.

 

5-) Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal?

A parte lesada pode ter direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade.

Exemplo: se A contrata com a agência de viagens B a realização de férias no Brasil e, na sequência da declaração do estado de emergência, o Governo impõe um período de quarentena obrigatório de 15 dias para todas as pessoas, residentes ou não residentes, que entrem ou regressem a território nacional provindas daquele país, A poderá ter direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade (por exemplo, o adiamento das férias para período posterior).

O supra referido é aplicável nos contratos internacionais não sujeitos à Lei portuguesa?

Não. Tudo quanto supra se referiu tem como pressuposto a Lei, a doutrina e a jurisprudência nacionais.

Por isso, é boa prática salvaguardar a questão nos próprios contratos, definindo-se com o máximo de rigor os casos que as partes consideram constituir motivo de “força maior” ou “caso fortuito” e as respectivas consequências em termos de exclusão ou limitação de responsabilidade.

No actual paradigma pandémico, o que se pode fazer para acautelar os riscos emergentes do incumprimento motivado por casos furtuitos ou de força maior?

  • A cautelar, no próprio contrato, os casos que as partes consideram constituir motivo de “força maior” ou “caso fortuito” e as respectivas consequências em termos de modificação do contrato e de exclusão ou limitação de responsabilidades.

 

  • Se confrontado com contratos que não salvaguardem aquelas situações, propor sempre a sua alteração.

 

  • Procurar rever os contratos existentes e de longa duração que não contenham as referidas previsões.

 

  • Em caso de incumprimento, não partir do pressuposto que toda e qualquer “complicação” causada pela pandemia ou por medidas do governo ao seu combate constitui motivo de “força maior” ou “caso fortuito” – a análise deve ser cuidado, casuística e efectuada por pessoa habilitada com os necessários conhecimentos jurídicos;

 

  • Não invocar uma cláusula de força maior sem previamente se certificar de que estão reunidos os requisitos para o efeito – os custos da invocação infundada poderão ser tão ou mais gravosos que o incumprimento em si.

 

  • Em caso de incumprimento, privilegiar as soluções negociadas.