Os Contratos de Arrendamento e suas Vicissitudes para os Senhorios e Arrendatários em Contexto Covid-19

I.

No actual contexto legislativo de excepção, por decorrência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, os senhorios são confrontados com a suspensão das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou outra razão social imperiosa.

A suspensão é por tempo indefinido. Significa isso que, actualmente, os Senhores não sabem quando é que conseguirão ver desocupados os seus imóveis, sofrendo os prejuízos inerentes.

Concomitantemente, encontram-se suspensos, até 31 de Dezembro de 2020, a produção de feitos das denúncias e da oposição à renovação do contrato de arrendamento efectuadas pelo senhorio, assim como os efeitos da caducidade e da revogação. Como tal, os arrendatários que até àquela data teriam de proceder à entrega do locado, estão dispensados de o fazer.

 

II.

Como se não bastasse, a Lei n.º 4-C/2020, de 06 de Abril, estabeleceu um regime excepcional de mora no pagamento da renda, com regras bastante intrincadas, cujo incumprimento é fomentado pelo próprio legislador, senão vejamos:

No que concerne ao arrendamento habitacional, o arrendatário pode “diferir” o pagamento das rendas vencidas entre 01 de Abril de 2020 e 01 de Setembro de 2020, desde que tenham sofrido uma perda de rendimento superior a 20% e, para efectuarem o pagamento da renda, estejam sujeitos a uma taxa de esforço igual ao superior a 35%.

Para o efeito, o arrendatário teria o dever de informar o senhorio, por escrito, até cinco dias antes do vencimento da primeira renda em que pretendesse beneficiar deste regime.

Porém, de acordo com o barómetro “confiança dos proprietários” da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), 56% dos arrendatários simplesmente deixaram de pagar a renda, sem qualquer comunicação ou procedimento, pelo que a suspensão da renda foi utilizada arbitrariamente. Para isso contribuiu, sem dúvida, o facto de todas as acções, procedimentos e actos de execução de despejos estarem suspensos.

Além disso, os arrendatários habitacionais que podiam beneficiar deste regime e que não tivessem recorrido ao empréstimo sem juros do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), teriam de iniciar o pagamento das rendas diferidas em Setembro de 2020, em 12 prestações, porém, de acordo com aquele barómetro, 52,6% dos senhorios ainda não receberam qualquer duodécimo.

 

III.

Em termos similares, para o arrendamento não habitacional, a Lei n.º 4-C/2020, de 06 de Abril, estabeleceu a possibilidade de os arrendatários diferirem as rendas vencidas entre 01 de Abril de 2020 e 31 de Setembro de 2020.

Porém, só podem beneficiar deste regime os arrendatários que tenham estabelecimentos abertos ao público e destinados a actividades de comércio a retalho e de prestação de serviços e os estabelecimentos de restauração e similares, desde que tenham sido encerrados ou a actividade tenha sido suspensa por determinação do estado de emergência ou, após a sua cessação, ao abrigo de legislação ou medida administrativa aprovada no contexto da pandemia.

Embora a Lei não esclareça, entendemos que o “encerramento” e/ou a “suspensão” não têm de ser totais, podendo beneficiar deste regime os arrendatários que se viram impossibilitados de exercer a sua actividade durante o horário normal de funcionamento do estabelecimento comercial.

Para beneficiarem deste regime, os arrendatários têm de comunicar a sua intenção ao senhorio, por carta registada com aviso de recepção e até cinco dias antes do vencimento da primeira renda.

Porém, devido à suspensão, por tempo indefinido, das acções e dos procedimentos especiais de despejo, os arrendatários não são encorajados a cumprir este procedimento, ficando os senhorios à mercê da vontade daqueles.

Poder-se-á argumentar que o Senhorio pode recorrer à acção de despejo, no entanto, a suspensão das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, tem igualmente lugar quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por qualquer razão social imperiosa.

Ora, quando do despejo decorra a impossibilidade de exercício da actividade comercial do arrendatário e, consequentemente, o risco de incumprimento generalizado das suas obrigação e, em ultima instância, a própria insolvência, com a consequente perda de rendimentos dos trabalhadores, não será difícil justificar em juízo uma razão social imperiosa que justifique a suspensão da acção de despejo.

 

IV.

Em jeito de conclusão, verificamos que, em matéria de arrendamento no contexto da pandemia, o Legislador / Estado não dá qualquer apoio tangível aos arrendatários e nem aos senhorios, propondo-se apenas, no arrendamento habitacional, a conceder empréstimos sem juros que, de acordo com o barómetro da ALP, só tiveram a adesão de 3,2% dos arrendatários.

Não existem dados quanto à adesão dos senhorios a tal empréstimo, mas é de supor que tenha sido igualmente irrelevante, considerando que se tratam de meros empréstimos.

Já quanto ao arrendamento não habitacional, a resposta do Estado é absolutamente nula, limitando-se o Legislador a possibilitar aos arrendatários uma “moratória” que, a partir de 01 de Janeiro de 2020 se traduzirá num aumento significativo da renda a pagar ao senhorio (o valor da renda normal, acrescido de 1/24 das rendas não pagas durante o período de suspensão do pagamento).

Em síntese, o regime não é benéfico para qualquer uma das partes, pois, embora numa visão simplista e de curto prazo, fique a sensação de que os arrendatários saem beneficiados, quer com a suspensão dos despejos, quer com a moratória no pagamento das rendas, o certo é que, numa visão de médio e longo prazo, concluímos que estas medidas só diferem a obrigação de pagamento da renda para momento posterior.

Significa isto que, a partir de Setembro de 2020 (para os arrendatários habitacionais) e de Janeiro de 2021 (para os arrendatários não habitacionais), a sua obrigação de pagamento de renda será agravada com o pagamento das prestações das rendas diferidas, aumentando assim o risco de incumprimento.

De resto, a recente evolução da situação pandémica no nosso país permite antever, com bastante segurança, que as limitações impostas às actividades económicas se prolongarão para lá de 01 de Janeiro de 2020 (quando os arrendatários não habitacionais já terão de iniciar a regularização da dívida).

Concluímos, por isso, que a abordagem legislativa em matéria de arrendamento no contexto da pandemia, veio introduzir significativas distorções no mercado do arrendamento que, a médio e longo prazo levarão ao incumprimento generalizado da obrigação de pagamento de renda, com o consequente aumento dos litígios judiciais, do número de despejos e da impossibilidade, por parte dos senhorios, em cobrarem os seus créditos.